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(Para se ler ao som de Você se parece com todo mundo – do Cazuza).

Amor, quando morre, deixa uma cicatriz feia na camada mais funda da parte da alma que fica sob a pele. Uma cicatriz feia, disforme – que às vezes dói ainda mais pelo fato de simplesmente não doer. Dói por não ser possível engolir de volta todo o sangue que dela um dia jorrou. Dói por estar ali, pela pele que nunca mais voltará a ter seu esplendor inocente. Um amor morto nos tira a ingenuidade e nos dá um ar blasé de quem já teve um amor e sabe como é. Um ar de quem sobreviveu não a um naufrágio, mas a uma doença grave e secreta que todo mundo já teve e não diz. Deixa na cara a vontade de esculpir no reflexo a força de continuar, não mais como continuar após o abismo do amor, ao abismo é fácil: todo mundo sobrevive. O difícil é sobreviver ao outro lado, depois do resgate, saudando todo dia no espelho aquela cicatriz de arrependimento.
Um amor quando morre deixa os pés fincados na terra de um jeito. Morre e deixa umas músicas arquivadas na HD, umas cartas rasgadas no lixo, outras queimadas no desespero da raiva e mais umas guardadinhas num canto do armário para serem vistas quando a cicatriz já não for a única e se puder lembrar das coisas com menos mágoa e mais nostalgia.
Um amor quando morre sem atestado de óbito deixa milhões de gritos, palavrões e batidas de porta presos na garganta. Deixa um arrependimento das coisas sem perdão. Deixa uma saudade da cama cheia. Da inocência de se dormir acreditando. Um amor quando morre cria insônia, aumenta o tamanho da cama, o tamanho do quarto, a intensidade da escuridão, até a noite fica mais longa.
Um amor quando morre faz descobrir o gostoso de dormir esparramada, sozinha. Faz descobrir o afago do fundo do copo. A beleza da iluminação disforme da madrugada. Da alegria decadente que as noites não dormidas na rua têm. Morre e um dia a vida ganha cores fortes como não se pensou quando as coisas eram o preto-no-branco de um amor.
Um amor quando morre deixa no rádio aquela música do Cazuza, você se parece com todo mundo… Um amor quando morre, mata. Abre ferida grave, sangra jorra, alaga a cama de saudade e lágrimas, dá ao travesseiro forma de corpo. O sangue um dia estanca. A lágrima seca. A ferida fecha, cria casca, vira cicatriz charmosa que a gente veste no rosto quando vira mais um sobrevivente na vida. Amor quando morre nos faz olhar o céu à noite e ver mais estrelas do que o céu poluído de um amor nos permitia.
Amor morre e deixa a vontade do café forte, do uísque amargo, da noite menos amena. Amor quando morre deixa mais funda é a vontade de amores, que nos amem, que nos matem. O amor não pode ser um*.

*Referência ao verso de Romã Neptune.

Os dias passavam mais lentamente como se a natureza tivesse alterado de propósito o relógio biológico de tudo, até as gotas da chuva que caiam, o faziam mais vagarosamente, o verde das árvores e o colorido das flores exibiam um pálido cinza, mas Carla sabia que era tudo sintomas da separação. A separação, pensava ela com a mão no queixo e sobre a mesa olhando para o quintal acinzentado, era tudo que ela mais temia desde que Gabriel a contou sobre sua viagem, uma história que talvez terminasse ali, quase como se nunca tivesse acontecido.

Não o julgara mal, era para o seu futuro, quem sabe dos dois, pensava ela acreditando na possibilidade de Gabriel voltar anos depois, talvez décadas para reviver o amor abortado pela mudança de país, mas não, e agora caía uma lágrima, Gabriel nunca vai voltar, vai conhecer outra pessoa, alguém com quem pode dividir os sonhos por lá mesmo e ter filhos num país estranho – “E essa pessoa vai viver a minha vida… Quem sabe eu entre para um convento ou mude meu nome para Serafina e vire professora…” outras lágrimas caíam agora molhando um pedaço de papel que Carla tinha guardado desde o início do namoro, nele estava escrito em letras alternadas de vermelho e azul “Carla e Gabriel para sempre”, assim com contornos inocentes mas sinceros e de repente Carla fechou os olhos e desejou com toda a força do seu coração – “Gabriel, fica comigo…” e quando abriu os olhos podia jurar que a árvore do seu quintal estava esverdeando de novo, mas não teve tempo de reparar direito porque tocou a campanhia – “Entrega para senhorita Carla” – disse um entregador com um buquê de rosas que realmente estavam com um rosa vistoso sobre suas pétalas, e havia um cartão, o coração de Carla acelerou – “É a letra dele com cores alternadas de vermelho e azul!” – “Carla, cancelei tudo, vou ficar com você pra sempre porque eu te amo e você é minha vida e meu futuro, assinado Gabriel…”

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(suspiro profundo)

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